A fome no mundo
GE o P o L I T I CA As potências agrícolas estão no limite
de suas produções e os biocombustíveis são necessários. Cultivar alimentos nesse cenário é desafio que se impõe
A questão alimentar está no centro da agenda internacional em 2008, e aí deve permanecer durante um bom tempo. Manifestações populares ao "Sul" do planeta, México, Indonésia, Haiti e Costa do Marfim, expuseram um problema emergencial: faltam alimentos. As principais organizações intergovernamentais (OIGs), instâncias em que têm mais voz os representantes do "Norte" do mundo, quase que em conjunto descobriram o culpado pela alta dos preços dos alimentos: o biocombustível. A acusação foi duramente rebatida pelo governo brasileiro. Nas palavras do presidente Lula, os subsídios agrícolas impostos pelos países ricos são os responsáveis pela atual alta do preço dos alimentos.
A crise desperta um paradigma: como pode haver carência de alimentos em um mundo que vive o esplendor da revolução tecnológica e colhe o seu conseqüente aumento de produção agrícola?
São vários os fatores, inclusive ocultos, que levam milhares de pessoas a passar fome, pela ausência de alimentos ou pelos altos preços. Abaixo, uma reflexão sobre as principais variantes que nos ajudam a compreender esse que parece ser o grande desafio do início do século XXI. De imediato, é possível afirmar que, entre os motivos da atual crise, está descartada a perspectiva neomalthusiana, que apostava em um crescimento demográfico maior do que a produção agrícola. Certamente, não foi isso o que se observou.
Agroenergia vs. produção alimentar
Atribuir o papel de vilão exclusivamente à expansão da canade-açúcar (no Brasil) e do milho (nos EUA), como fizeram o FMI e o Banco Mundial, não é um caminho razoável. Tampouco é possível isentar a responsabilidade dos biocombustíveis, como fez o presidente Lula.
Um estudioso da questão agrária brasileira, o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em artigo recente publicado no jornal Folha de S.Paulo mostrou com dados do IBGE que a expansão dos biocombustíveis compromete a produção alimentar. A ampliação de áreas canavieiras nos últimos 18 anos cresceu na mesma proporção da diminuição das áreas de cultivo do arroz, do feijão e da mandioca. Segundo Oliveira, tomando-se
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os municípios que tiveram expansão de mais de 500 hectares de cana no período, verifica-se que, neles, ocorreu a redução de 261 mil hectares de feijão e 340 mil hectares de arroz. Essa área reduzida poderia produzir 400 mil toneladas de feijão, ou seja, 12% da produção nacional. E 1 milhão de toneladas de arroz, o que equivale a 9% do total do Brasil.
O pesquisador da Unicamp Antonio Márcio Buainain minimizou a pressão dos agroenergéticos sobre a lavoura de gêneros básicos. Para ele, a cana cresce sobre as áreas de pecuária extensiva: o setor canavieiro encontra oferta de terras mais baratas em pastagens degradadas. Não interessa ao setor, ao Estado nem à sociedade uma expansão selvagem da cana.
Potências demográficas e comensais
Dos cinco países mais populosos do globo, quatro estão fora do eixo primeiro-mundista e três apresentaram melhoria econômica nos últimos anos. São eles: China, Índia e Brasil - especialmente os dois primeiros. Isso, obviamente, repercutiu em maior demanda por alimentos, pressionando as demais áreas do planeta. A tendência é que China e Índia continuem trilhando o caminho do crescimento a passos largos, enquanto para o Brasil são esperados passos não tão rápidos.
O fato a se considerar é que a China e a Índia somam 2,5 bilhões de habitantes, aproximadamente 40% da população mundial. Os próximos anos dirão se esses países desejarão ter o mesmo padrão de consumo do Ocidente. Se sim, o meio ambiente pagará caro por isso.
Petróleo VS. alimento
Em 2004, o preço do barril de petróleo situava-se na casa de 40 dólares. Em quatros anos, o seu preço triplicou. O efeito de tal escalada atua como metástase nos mais variados segmentos da economia, visto que o "ouro negro" ainda configura-se como lastro energético mundial. Na agricultura, o impacto é imediato, seja no processo de escoamento dos produtos, seja na utilização de fertilizantes oriundos do petróleo. Logo, a alta do barril do produto, atualmente em torno de 120 dólares, reflete inevitavelmente na produção e distribuição alimentar.
Reflexos ambientais
O clima comprometeu algumas áreas produtoras. Uma delas
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POTÊNCIA. Aumento
do consumo na China colabora com a escassez de alimentos
é Bangladesh, país que está próximo da auto-suficiência e quase não depende da importação de alimentos para a sobrevivência de uma população de 135 milhões de habitantes. Mas a Austrália é importante fornecedora mundial, com uma produção excedente, conseqüência direta de sua escassa demografia. Uma longa estiagem nesse que é o sexto maior país do mundo reduziu drasticamente a sua produção.
A especulação das commodities
As commodities no mercado futuro alimentam imensamente a especulação financeira. Acreditando que o futuro guarda uma alta ainda maior no preço dos alimentos, o setor financeiro atraiu um grande número de jogadores no circuito, que nada contribui para a situação de momento.
A agricultura mundial contemporânea
China, Índia, Estados Unidos, Rússia, Brasil e França são as grandes potências agrícolas mundiais. Contudo, quase todos esses países estão no limite de suas produções, não tendo mais como expandir as respectivas fronteiras. As tecnologias agrícolas que compensam a limitação territorial já há algum tempo foram incorporadas. A exceção fica por conta do Brasil. Atualmente, dono do maior potencial agricultável (em torno de 70% de suas terras), o País conta ainda com o mais valorizado ingrediente agrícola do momento: água.
Quando se enxerga o Brasil como o "celeiro do mundo" e o quanto o país ainda pode agregar à sua produção, os estudiosos consideram que a maior potência agrícola do mundo, os EUA, tem toda sua produção de grãos concentrada em uma área de, aproximadamente, 1,5 milhão de quilômetros quadrados.
Só na porção inexplorada do Centro-Oeste, o Brasil teria uma área similar. Contudo, trata-se de uma difícil equação: compatibilizar expansão agrícola e preservação ambiental. É praticamente impossível uma expansão em direção ao Cerrado que não comprometa a sua flora e fauna.
Atualmente, o agronegócio, que inclui agricultura, pecuária e agroenergia, responde por um terço do PIE brasileiro, além de representar 42% da pauta de exportações do País. A perspectiva de incremento no setor é das mais otimistas. Logo, o meio ambiente corre riscos efetivos.
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Doha e a produção de alimentos
Concebida como principal mecanismo para reduzir as bar~ [eiras alfandegárias no comércio internacional, a Rodada de Doha, iniciada em 2001 e com término previsto para 2006, mergulhou em profundo impasse.
A polarização verificada entre países ricos de um lado e pobres do outro teve na questão dos subsídios agrícolas o centro dos debates. Nas várias negociações que se sucederam não se chegou a um bom termo. Na Rodada de Cancún, no México, em 2003, a polarização se radicalizou, provocando o fracasso do evento.
Nesse encontro, o Brasil liderou um movimento que veio a ganhar importância na agenda internacional: o G-20, constituído por 20 países "em desenvolvimento." Na realidade, a força do G-20 está assentada em quatro países emergentes e com interesses comuns: Brasil, China, Índia e África do Sul.
O estreitamento com esses três países passou a ter prioridade na agenda da política externa brasileira. As viagens do presidente Lula a todos eles nos últimos tempos não foi mera coin
cidência. Detalhe importante: as três potências demográficas respondem por, aproximadamente, metade da população mundial, além de serem grandes potências agrícolas. Tal situação as coloca em uma situação de igualdade, ou até superioridade, em relação aos países ricos.
A próxima etapa de negociações ocorrerá em Genebra, na Suíça, mas não se sabe ao certo quando. Estava prevista para junho de 2008, mas foi prorrogada. Contudo, incluirá, certamente, a nova realidade alimentar exposta recentemente e esse aspecto conta a favor dos argumentos dos países pobres em sua luta pela
redução dos subsídios das potências do Norte, leia-se, Estados Unidos e França, os dois maiores entraves a um acordo.
A Organização Mundial do Comércio (OMe) tornou-se importante fórum de debates aos países do Sul, por ser uma instância mais democrática que outros organismos. Na ONU, no Banco Mundial ou no FMI, a relação é desigual. Os países ricos têm privilégios nas decisões, pois o voto não é paritário. Já no organismo comercial, para cada país, um voto.
vernamentais culminaram com a criação do Programa! - acional do Biodiesel, em 2004.
A renovação da matriz energética brasileira tem como instrumento legal a obrigatoriedade do uso do biodiesel, baseado em fontes de energia renováveis em substituição ao diesel comum, oriundo de combustíveis fósseis. Apontam-se inúmeras vantagens do Brasil em relação às demais nações do mundo para a fabricação de biodiesel: a grande extensão e biodiversidade do território brasileiro e, conseqüentemente, na diversidade de fontes de matérias-primas, no potencial de expansão agrícola, na experiência com o Proálcool e na existência de uma consolidada indústria de óleos vegetais.
O discurso corrente no governo atual procura atrelar a fabricação do biodiesel com o desenvolvimento da agricultura familiar, porque utilizaria essencialmente óleos vegetais oriundos da mamona, do dendê, do girassol e do pinhãomanso, entre outros. Contudo, o mercado tem se direcionado à soja, devido à superior rentabilidade econômica dessa lavoura em relação às demais culturas vegetais.
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS DAS POTÊNCIAS AGRíCOLAS MUNDIAIS
China: arroz. trigo. milho. soja. algodão. batata e cana de açucar.
Estados Unidos: soja. trigo. milho. laranja e algodão.
índia: arroz. feijão. bigo. chá e cana-de açúcar.
Rússia: trigo. batata e cevada. Brasil: cana-de-açúcar. café. laranja. algodão. soja. feijão. anoz. banana e mandioca.
França: bígo. soja. CEMIda. aveia. Qéterraba e uva
Brasil: produção alimentar e agroenergia
A segurança alimentar, nutricional e energética é área estratégica de qualquer nação. Portanto, ela deve estar no centro das políticas públicas, considerando as conseqüências econômicas e as possíveis implicações sociais, políticas e territoriais.
No Brasil, as preocupações com a segurança alimentar começaram a ganhar destaque com os estudos de Josué de Castro, na década de 1930. Desde então, esboçam-se propostas de políticas públicas visando o abastecimento alimentar.
Em relação à política energética do Brasil, há, desde a década de 1970, experiências com a produção de biocombustíveis, derivados de biomassa renovável. As recentes ações go-
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Diante do atual cenário mundial que promete elevar significativamente o consumo de biomassa, em substituição aos derivados de petróleo, a agricultura familiar não pode se restringir à produção de óleos vegetais para a indústria, sob pena de pôr em risco a própria existência. Fortalecer a agricultura familiar é ao mesmo tempo dar condições para que esses agricultores diversifiquem a sua produção, incorporem novas tecnologias e consigam se inserir no mercado competitivo.
A produção familiar voltada para as indústrias de biodiesel parece ser um possível caminho, desde que se cumpra a lei que determina no contrato de compra e venda a prestação de serviços e a capacitação técnica por parte do produtor de biodiesel a todos os agricultores familiares e fornecedores das matérias-primas às usinas de fabricação de biodiesel.
Segundo análises realizadas, em 2003, por Alfredo Tsunechiro, pesquisador do Instituto de Economia Agrícola (IEA), o valor da produção dos 70 principais produtos agropecuários no Brasil somou 158,3 bilhões de reais. Mas apenas quatro deles concentraram 52,3% do total do valor da produção agropecuária: soja, carne bovina, carne de frango e milho.
A Região Centro-Sul correspondeu a 82% do total do valor
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da produção agropecuária (129,7 bilhões de reais). Ao estado de São Paulo, que possui a maior diversidade de produção agrícola do País, coube a liderança com 15,2% do total do valor da produção agropecuária brasileira, ou 24 bilhões de reais.
Analisando o caso particular de São Paulo, com base em outros estudos realizados pelo IEA, fica claro que, em 2008, o valor da produção foi um determinante da escolha do plantio. A cana-de-açúcar representa o principal produto no valor da produção paulista, correspondendo a 29,4% do total.
Das 15 regiões de governo do estado de São Paulo, dez têm na cana-de-açúcar o produto de maior valor da produção agropecuária. Apesar de a expansão da cana alterar a configuração regional da atividade agrícola, os pesquisadores concluíram que, nos últimos anos, essa cultura tem avançado predominantemente sobre as áreas de pastagem cultivadas.
Do exposto depreende-se que a falta de alimentos, ou a incapacidade de produzi-los, não é o problema. O professor Renato Maluf, estudioso da questão alimentar e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), adverte sobre a importância da regulação pública sobre as condições de produção e distribuição dos alimentos.
Uma política nacional de segurança alimentar e nutricional deve atentar para a história da formação do território brasileiro, das desigualdades sociais e territoriais. Ou seja, a fome e a desnutrição estão mais concentradas em alguns espaços do Pais do que em outros. Há de se considerar, inclusive, a diversidade cultural em relação a hábitos alimentares e sistemas técnicos agrÍcolas.
Durante o século XX, o processo de padronização dos hábitos alimentares no mundo inteiro foi facilitado pelo crescimento do processamento industrial de alimentos. A globalização da economia, por meio do avanço nos sistemas de transportes e comunicações, contribuiu para a difusão em escala mundial de alimentos fabricados pelas grandes corporações da indústria alimentícia.
É nesse contexto que o sociólogo Boaventura de Souza Santos afirma que a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome.
Para o Brasil, são imperiosas as ações regionalizadas para a implementação de políticas públicas que visem a problemática alimentar e nutricional. É urgente conciliar política de segurança alimentar, nutricional e energética com uma política ambiental para um (re)ordenamento do território brasileiro. O planejamento das ações para cada uma dessas esferas, longe de ser conflitante, deve ter um foco comum: a soberania nacional, a qualidade de vida e a promoção de maior igualdade entre as pessoas. _
SAIBA MAIS
• Filmes
Ilha das Flores, direção de Jorge Furtado, 1989,
Brasil, 12 minutos.
Syriana, direção de Stephen Gaghan, 2005, Estados Unidos, 126 minutos.
Competência Compreender processos geográficos e históricos
Habilidade
Interpretar o processo de territorialização da produção
Atividade
l-Oriente os alunos a pesquisar sobre
os sistemas de produção das potências agrícolas
e compará-Ias. Por exemplo: a) A índia e a técnica
da jardinagem .
b) Jardinagem e terraceamento na China.
c) O alto emprego tecnológico da agricultura empresarial norte-americana. d) A mecanização
da agricultura brasileira.
2-Com base na matéria e em outros recursos didáticos, discutir com os alunos:
a) Quais são os grandes exportadores mundiais
de gêneros agrícolas?
b) Quais são os grandes importadores de alimentos? c) Existem países que mesmo sendo grandes produtores importam alimentos? Por quê?