sábado, 1 de novembro de 2008

ciclo IV inicial

A fome no mundo


GE o P o L I T I CA As potências agrícolas estão no limite
de suas produções e os biocombustíveis são necessários. Cultivar alimentos nesse cenário é desafio que se impõe



A questão alimentar está no centro da agenda in­ternacional em 2008, e aí deve permanecer du­rante um bom tempo. Manifestações populares ao "Sul" do planeta, México, Indonésia, Haiti e Costa do Marfim, expuseram um problema emergencial: faltam alimentos. As principais organizações intergovernamentais (OIGs), instâncias em que têm mais voz os representantes do "Norte" do mundo, quase que em conjunto descobriram o culpado pela alta dos preços dos ali­mentos: o biocombustível. A acusação foi duramente rebati­da pelo governo brasileiro. Nas palavras do presidente Lula, os subsídios agrícolas impostos pelos países ricos são os res­ponsáveis pela atual alta do preço dos alimentos.
A crise desperta um paradigma: como pode haver carên­cia de alimentos em um mundo que vive o esplendor da re­volução tecnológica e colhe o seu conseqüente aumento de produção agrícola?
São vários os fatores, inclusive ocultos, que levam milha­res de pessoas a passar fome, pela ausência de alimentos ou pelos altos preços. Abaixo, uma reflexão sobre as principais variantes que nos ajudam a compreender esse que parece ser o grande desafio do início do século XXI. De imediato, é possível afirmar que, entre os motivos da atual crise, está descartada a perspectiva neomalthusiana, que apostava em um crescimento demográfico maior do que a produção agrí­cola. Certamente, não foi isso o que se observou.

Agroenergia vs. produção alimentar

Atribuir o papel de vilão exclusivamente à expansão da cana­de-açúcar (no Brasil) e do milho (nos EUA), como fizeram o FMI e o Banco Mundial, não é um caminho razoável. Tam­pouco é possível isentar a responsabilidade dos biocombus­tíveis, como fez o presidente Lula.
Um estudioso da questão agrária brasileira, o geógrafo Ario­valdo Umbelino de Oliveira, em artigo recente publicado no jornal Folha de S.Paulo mostrou com dados do IBGE que a ex­pansão dos biocombustíveis compromete a produção alimen­tar. A ampliação de áreas canavieiras nos últimos 18 anos cres­ceu na mesma proporção da diminuição das áreas de cultivo do arroz, do feijão e da mandioca. Segundo Oliveira, tomando-se

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os municípios que tiveram ex­pansão de mais de 500 hecta­res de cana no período, verifi­ca-se que, neles, ocorreu a re­dução de 261 mil hectares de feijão e 340 mil hectares de ar­roz. Essa área reduzida pode­ria produzir 400 mil toneladas de feijão, ou seja, 12% da pro­dução nacional. E 1 milhão de toneladas de arroz, o que equi­vale a 9% do total do Brasil.
O pesquisador da Unicamp Antonio Márcio Buainain mi­nimizou a pressão dos agroe­nergéticos sobre a lavoura de gêneros básicos. Para ele, a cana cresce sobre as áreas de pecuária extensiva: o setor canavieiro encontra oferta de terras mais baratas em pasta­gens degradadas. Não inte­ressa ao setor, ao Estado nem à sociedade uma expansão selvagem da cana.

Potências demográficas e comensais
Dos cinco países mais popu­losos do globo, quatro estão fora do eixo primeiro-mundista e três apresentaram melhoria econômica nos últimos anos. São eles: China, Índia e Brasil - especialmente os dois pri­meiros. Isso, obviamente, repercutiu em maior demanda por alimentos, pressionando as demais áreas do planeta. A ten­dência é que China e Índia continuem trilhando o caminho do crescimento a passos largos, enquanto para o Brasil são esperados passos não tão rápidos.
O fato a se considerar é que a China e a Índia somam 2,5 bilhões de habitantes, aproximadamente 40% da população mundial. Os próximos anos dirão se esses países desejarão ter o mesmo padrão de consumo do Ocidente. Se sim, o meio ambiente pagará caro por isso.

Petróleo VS. alimento
Em 2004, o preço do barril de petróleo situava-se na casa de 40 dólares. Em quatros anos, o seu preço triplicou. O efeito de tal escalada atua como metástase nos mais varia­dos segmentos da economia, visto que o "ouro negro" ainda configura-se como lastro energético mundial. Na agricultu­ra, o impacto é imediato, seja no processo de escoamento dos produtos, seja na utilização de fertilizantes oriundos do petróleo. Logo, a alta do barril do produto, atualmente em torno de 120 dólares, reflete inevitavelmente na produção e distribuição alimentar.

Reflexos ambientais
O clima comprometeu algumas áreas produtoras. Uma delas

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POTÊNCIA. Aumento
do consumo na China colabora com a escassez de alimentos

é Bangladesh, país que está próximo da auto-suficiência e quase não depende da impor­tação de alimentos para a so­brevivência de uma população de 135 milhões de habitantes. Mas a Austrália é importante fornecedora mundial, com uma produção excedente, con­seqüência direta de sua escas­sa demografia. Uma longa es­tiagem nesse que é o sexto maior país do mundo reduziu drasticamente a sua produção.

A especulação das commodities
As commodities no mercado futuro alimentam imensamen­te a especulação financeira. Acreditando que o futuro guar­da uma alta ainda maior no preço dos alimentos, o setor financeiro atraiu um grande número de jogadores no cir­cuito, que nada contribui para a situação de momento.

A agricultura mundial contemporânea
China, Índia, Estados Unidos, Rússia, Brasil e França são as grandes potências agrícolas mundiais. Contudo, quase todos esses países estão no limite de suas produções, não tendo mais como expandir as respectivas fronteiras. As tecnolo­gias agrícolas que compensam a limitação territorial já há algum tempo foram incorporadas. A exceção fica por conta do Brasil. Atualmente, dono do maior potencial agricultável (em torno de 70% de suas terras), o País conta ainda com o mais valorizado ingrediente agrícola do momento: água.
Quando se enxerga o Brasil como o "celeiro do mundo" e o quanto o país ainda pode agregar à sua produção, os es­tudiosos consideram que a maior potência agrícola do mundo, os EUA, tem toda sua produção de grãos concen­trada em uma área de, aproximadamente, 1,5 milhão de quilômetros quadrados.
Só na porção inexplorada do Centro-Oeste, o Brasil teria uma área similar. Contudo, trata-se de uma difícil equação: compatibilizar expansão agrícola e preservação ambiental. É praticamente impossível uma expansão em direção ao Cerrado que não comprometa a sua flora e fauna.
Atualmente, o agronegócio, que inclui agricultura, pe­cuária e agroenergia, responde por um terço do PIE brasi­leiro, além de representar 42% da pauta de exportações do País. A perspectiva de incremento no setor é das mais oti­mistas. Logo, o meio ambiente corre riscos efetivos.

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Doha e a produção de alimentos
Concebida como principal mecanismo para reduzir as bar~ [eiras alfandegárias no comércio internacional, a Rodada de Doha, iniciada em 2001 e com término previsto para 2006, mergulhou em profundo impasse.
A polarização verificada entre países ricos de um lado e pobres do outro teve na questão dos subsídios agrícolas o centro dos debates. Nas várias negociações que se sucede­ram não se chegou a um bom termo. Na Rodada de Cancún, no México, em 2003, a polarização se radicalizou, provo­cando o fracasso do evento.
Nesse encontro, o Brasil liderou um movimento que veio a ganhar importância na agenda internacional: o G-20, cons­tituído por 20 países "em desenvolvimento." Na realidade, a força do G-20 está assentada em quatro países emergentes e com interesses comuns: Brasil, China, Índia e África do Sul.
O estreitamento com esses três países passou a ter priorida­de na agenda da política externa brasileira. As viagens do pre­sidente Lula a todos eles nos últimos tempos não foi mera coin­
cidência. Detalhe importante: as três potências demográficas respon­dem por, aproximadamente, metade da população mundial, além de se­rem grandes potências agrícolas. Tal situação as coloca em uma situa­ção de igualdade, ou até superiori­dade, em relação aos países ricos.

A próxima etapa de negociações ocorrerá em Genebra, na Suíça, mas não se sabe ao certo quando. Estava prevista para junho de 2008, mas foi prorrogada. Contudo, incluirá, cer­tamente, a nova realidade alimentar exposta recentemente e esse aspec­to conta a favor dos argumentos dos países pobres em sua luta pela
redução dos subsídios das potências do Norte, leia-se, Esta­dos Unidos e França, os dois maiores entraves a um acordo.
A Organização Mundial do Comércio (OMe) tornou-se importante fórum de debates aos países do Sul, por ser uma instância mais democrática que outros organismos. Na ONU, no Banco Mundial ou no FMI, a relação é desigual. Os países ricos têm privilégios nas decisões, pois o voto não é paritário. Já no organismo comercial, para cada país, um voto.
vernamentais culminaram com a criação do Programa! - a­cional do Biodiesel, em 2004.
A renovação da matriz energética brasileira tem como ins­trumento legal a obrigatoriedade do uso do biodiesel, basea­do em fontes de energia renováveis em substituição ao diesel comum, oriundo de combustíveis fósseis. Apontam-se inú­meras vantagens do Brasil em relação às demais nações do mundo para a fabricação de biodiesel: a grande extensão e biodiversidade do território brasileiro e, conseqüentemente, na diversidade de fontes de matérias-primas, no potencial de expansão agrícola, na experiência com o Proálcool e na exis­tência de uma consolidada indústria de óleos vegetais.
O discurso corrente no governo atual procura atrelar a fa­bricação do biodiesel com o desenvolvimento da agricultura familiar, porque utilizaria essencialmente óleos vegetais oriundos da mamona, do dendê, do girassol e do pinhão­manso, entre outros. Contudo, o mercado tem se direciona­do à soja, devido à superior rentabilidade econômica dessa lavoura em relação às demais culturas vegetais.

PRODUÇÃO DE ALIMENTOS DAS POTÊNCIAS AGRíCOLAS MUNDIAIS



China: arroz. trigo. milho. soja. algodão. batata e cana de açucar.
Estados Unidos: soja. trigo. milho. laranja e algodão.

índia: arroz. feijão. bigo. chá e cana-de açúcar.

Rússia: trigo. batata e cevada. Brasil: cana-de-açúcar. café. laranja. algodão. soja. feijão. anoz. banana e mandioca.

França: bígo. soja. CEMIda. aveia. Qéterraba e uva
Brasil: produção alimentar e agroenergia
A segurança alimentar, nutricional e energética é área estraté­gica de qualquer nação. Portanto, ela deve estar no centro das políticas públicas, considerando as conseqüências econômicas e as possíveis implicações sociais, políticas e territoriais.
No Brasil, as preocupações com a segurança alimentar co­meçaram a ganhar destaque com os estudos de Josué de Cas­tro, na década de 1930. Desde então, esboçam-se propostas de políticas públicas visando o abastecimento alimentar.
Em relação à política energética do Brasil, há, desde a dé­cada de 1970, experiências com a produção de biocombustí­veis, derivados de biomassa renovável. As recentes ações go-
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Diante do atual cenário mundial que promete elevar signi­ficativamente o consumo de biomassa, em substituição aos derivados de petróleo, a agricultura familiar não pode se res­tringir à produção de óleos vegetais para a indústria, sob pena de pôr em risco a própria existência. Fortalecer a agricultura familiar é ao mesmo tempo dar condições para que esses agri­cultores diversifiquem a sua produção, incorporem novas tec­nologias e consigam se inserir no mercado competitivo.
A produção familiar voltada para as indústrias de biodiesel parece ser um possível caminho, desde que se cumpra a lei que determina no contrato de compra e venda a prestação de serviços e a capacitação técnica por parte do produtor de bio­diesel a todos os agricultores familiares e fornecedores das matérias-primas às usinas de fabricação de biodiesel.
Segundo análises realizadas, em 2003, por Alfredo Tsune­chiro, pesquisador do Instituto de Economia Agrícola (IEA), o valor da produção dos 70 principais produtos agropecuários no Brasil somou 158,3 bilhões de reais. Mas apenas quatro de­les concentraram 52,3% do total do valor da produção agro­pecuária: soja, carne bovina, carne de frango e milho.
A Região Centro-Sul correspondeu a 82% do total do valor
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da produção agropecuária (129,7 bilhões de reais). Ao estado de São Paulo, que possui a maior diversidade de produção agrí­cola do País, coube a liderança com 15,2% do total do valor da produção agropecuária brasileira, ou 24 bilhões de reais.
Analisando o caso particular de São Paulo, com base em outros estudos realizados pelo IEA, fica claro que, em 2008, o valor da produção foi um determinante da escolha do plan­tio. A cana-de-açúcar representa o principal produto no va­lor da produção paulista, correspondendo a 29,4% do total.
Das 15 regiões de governo do estado de São Paulo, dez têm na cana-de-açúcar o produto de maior valor da produção agropecuária. Apesar de a expansão da cana alterar a confi­guração regional da atividade agrícola, os pesquisadores con­cluíram que, nos últimos anos, essa cultura tem avançado predominantemente sobre as áreas de pastagem cultivadas.
Do exposto depreende-se que a falta de alimentos, ou a in­capacidade de produzi-los, não é o problema. O professor Re­nato Maluf, estudioso da questão alimentar e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), adverte sobre a importância da regulação pública sobre as condições de produção e distribuição dos alimentos.
Uma política nacional de segurança alimentar e nutricional deve atentar para a história da formação do território brasileiro, das desigualdades sociais e territoriais. Ou seja, a fome e a desnu­trição estão mais concentradas em alguns espaços do Pais do que em outros. Há de se considerar, inclusive, a diversidade cultural em relação a hábitos alimentares e sistemas técnicos agrÍcolas.
Durante o século XX, o processo de padronização dos há­bitos alimentares no mundo inteiro foi facilitado pelo cres­cimento do processamento industrial de alimentos. A globa­lização da economia, por meio do avanço nos sistemas de transportes e comunicações, contribuiu para a difusão em escala mundial de alimentos fabricados pelas grandes cor­porações da indústria alimentícia.
É nesse contexto que o sociólogo Boaventura de Souza Santos afirma que a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome.
Para o Brasil, são imperiosas as ações regionalizadas para a implementação de políticas públicas que visem a proble­mática alimentar e nutricional. É urgente conciliar política de segurança alimentar, nutricional e energética com uma política ambiental para um (re)ordenamento do território brasileiro. O planejamento das ações para cada uma dessas esferas, longe de ser conflitante, deve ter um foco comum: a soberania nacional, a qualidade de vida e a promoção de maior igualdade entre as pessoas. _
SAIBA MAIS
• Filmes
Ilha das Flores, direção de Jorge Furtado, 1989,
Brasil, 12 minutos.
Syriana, direção de Stephen Gaghan, 2005, Estados Unidos, 126 minutos.
Competência Compreender processos geográficos e históricos
Habilidade
Interpretar o processo de territorialização da produção
Atividade
l-Oriente os alunos a pesquisar sobre
os sistemas de produção das potências agrícolas
e compará-Ias. Por exemplo: a) A índia e a técnica
da jardinagem .
b) Jardinagem e terraceamento na China.
c) O alto emprego tecnológico da agricultura empresarial norte-americana. d) A mecanização
da agricultura brasileira.

2-Com base na matéria e em outros recursos didáticos, discutir com os alunos:
a) Quais são os grandes exportadores mundiais
de gêneros agrícolas?
b) Quais são os grandes importadores de alimentos? c) Existem países que mesmo sendo grandes produtores importam alimentos? Por quê?